Saiu hoje um artigo no jornal britânico The Guardian, assinado pela crítica de cinema Manuela Lazic, que discute um tema bastante sensível nos últimos anos: o poder cada vez maior dado pelos estúdios de cinema a influenciadores digitais, e a consequente desvalorização do trabalho do crítico de filmes. Para a autora, isso impacta muito negativamente não só a reflexão e escrita de cinema, mas também a cultura cinematográfica e a própria produção de filmes. Tomei a liberdade de traduzir e postar aqui no blog o artigo em sua forma integral, com o intuito de fazer chegar essa necessária discussão também ao público falante de língua portuguesa. Boa leitura!

Quem precisa de críticos de cinema quando os estúdios podem ter certeza de que influenciadores digitais elogiarão seus filmes?

Uma substituição de escritores qualificados por aqueles simplesmente em busca de ingressos gratuitos desvaloriza o cinema – e a experiência do público

“Sinta-se à vontade para compartilhar seus sentimentos positivos sobre o filme no Twitter após a exibição”, disse o mestre de cerimônias ao apresentar a pré-estreia de Barbie, filme de Greta Gerwig produzido pela Mattel, para a imprensa em Londres. O embargo de resenhas, porém, só seria levantado dois dias depois, mais perto do lançamento do filme. O público em geral não piscou, e não foi a primeira vez que meus colegas e eu ouvimos tais diretrizes, mas ficamos nos sentindo censurados: se eles não permitem nossas reações negativas, por que deveriam receber as positivas?

O objetivo dessa estratégia quase não precisa ser especificado: além da onipresente campanha de marketing do filme, as reações positivas nas mídias sociais selariam o acordo e garantiriam que os espectadores em potencial mais duvidosos fossem persuadidos a comparecer ao cinema no fim de semana de estreia, que são os dias mais cruciais para o sucesso de bilheteria de um filme. O fato de o público nesta exibição consistir principalmente de influenciadores digitais foi outra estratégia de marketing flagrante, que não teria sido tão ofensiva se não fosse pelo fato de que muitos críticos de cinema não puderam ver o filme antes de seu lançamento. O fenômeno também ocorreu em outras cidades. Alguns dias antes do lançamento do filme, os críticos parisienses ficaram perplexos ao ver alguns colegas compartilhando no Twitter fotos tiradas da tela do filme exibido no cinema, depois de serem informados de que não haveria exibições antecipadas para a imprensa. Além disso, o que era apresentado como entrevistas exclusivas com o elenco acabou sendo pré-gravado e pré-aprovado pelo estúdio. Antes de seu lançamento, o filme deveria ser visto apenas através de óculos cor-de-rosa.

Embora seja comum os estúdios de cinema tentarem controlar a narrativa organizando exibições antecipadas se acreditarem em um filme, ou evitando-as se não acreditarem, os métodos empregados para o lançamento de Barbie foram mais extremos. Eles são sintomáticos de uma tendência que vem evoluindo nos últimos anos e que diz respeito não apenas à profissão de crítico de cinema, mas à cultura em geral. Se toda a discussão sobre os méritos de um filme antes do lançamento for deixada para os influenciadores, cuja ambição principal é receber mercadorias gratuitas falando bem dos produtos do estúdio, o que podemos esperar que a cena cultural de cinema se torne? Onde ocorrerá uma conversa envolvente, desafiadora e, se não completamente imparcial, pelo menos imparcial sobre o cinema, e como o público deve pensar criticamente sobre o que está sendo vendido para ele?

Não é novidade que muitas pessoas têm uma percepção dos críticos como escritores pessimistas e artistas frustrados que nunca gostam de nada – obrigado, Ratatouille. Se os críticos podem parecer duros, porém, é porque amam o cinema e querem o melhor para ele. Eles querem que o cinema seja o mais artístico e transformador possível, em vez de um empreendimento puramente comercial destinado a nos fazer comprar mais coisas. Mas, ultimamente, até esse clichê se transformou. Quando a greve dos roteiristas e atores começou – em uma tentativa de fazer streamers e estúdios remunerarem os trabalhadores adequadamente – e o elenco e equipe de um filme se viram incapazes de promover seu trabalho, muitos se perguntaram se os críticos de cinema que continuassem a produzir seus textos estariam furando a linha de piquete; mais uma evidência de que a diferença entre críticos e relações públicas está se confundindo na consciência pública. De alguma forma, chegamos ao outro extremo do espectro: um crítico agora é percebido como alguém que ama todos os filmes, automática e acriticamente.

Ainda mais preocupante é o fato de alguns críticos se verem dessa maneira, evitando despertar toda e qualquer controvérsia (a reação da Internet contra opiniões impopulares não ajuda) e, em vez disso, optam por gerar empolgação exagerada por qualquer novo lançamento. Os estúdios são parcialmente responsáveis, inundando resenhistas jovens e falidos com produtos extravagantes de filmes que eles nunca poderiam pagar e removendo de suas listas de mala direta aqueles que avaliam seus filmes negativamente. Mas o problema é ainda mais profundo: em um ambiente no qual a indústria cinematográfica já está lutando por sua própria sobrevivência, e os streamers (sim, eles de novo) trabalharam duro para fazer os filmes parecerem tão valorosos quanto um vídeo do YouTube ou TikTok, permitindo que você assista a milhares deles por uma pequena taxa de assinatura, em vez de pagar o preço de um ingresso de cinema por cada um, é tentador para os cinéfilos querer promover a experiência da sala de cinema a todo custo. Por que desencorajar mais pessoas a irem ao cinema com uma crítica desfavorável?

Se a internet abriu caminho para a desvalorização do cinema via plataformas de streaming, também fez o mesmo para a crítica cinematográfica. O efeito democratizador é inegável, mas também é inegável o barateamento, literal e figurativamente, do trabalho crítico. Com muito mais pessoas escrevendo sobre cinema online, os pagamentos para críticas caíram para níveis chocantemente baixos, e a experiência supostamente exigida dos críticos de cinema foi esquecida – o conhecimento da história do cinema e boas habilidades de redação são cada vez menos valorizados. De erros de digitação e gramática pobre a mal-entendidos evidentes sobre o significado de certas palavras (o Cambridge Dictionary define “bombástico” (bombastic em Inglês) como “forte e confiante de uma forma que pretende ser muito poderosa e impressionante, mas pode não ter muito significado ou efeito real”, o que significaria que Barbie é um filme antes pretensioso, pedante, empolado do que memorável, estupendo, extraordinário) e leituras superficiais de filmes complexos, a qualidade da escrita sobre filmes diminuiu. É difícil recomendar que as pessoas leiam mais críticas quando isso costuma ser uma experiência tediosa ou ativamente irritante.

Essa baixa qualidade, disponibilidade em massa e baixo interesse, por sua vez, prejudicam as publicações e incentivam os editores a pagar cada vez menos a seus escritores – e o ciclo vicioso continua. Recentemente, um colega crítico twittou sua resenha de um filme recém-lançado nos cinemas dos Estados Unidos, mas, em vez de deixar suas palavras falarem por si, ele também anexou um clipe desse filme – um clipe que ele gravou ilegalmente do screener online com o qual o estúdio forneceu o filme (o tweet já foi apagado). Ele fez isso para encorajar as pessoas a ver o filme, porque ele disse: “Ninguém iria ler minha crítica mesmo, independentemente de quão bem eu ache que ela está escrita”. (Nota do tradutor: a autora usa os pronomes “they / theirs” para se referir a esse colega, pois não quer revelar o seu gênero). Quando perguntei por que se incomodar em escrever uma crítica, a resposta foi brutal e simples: por US$ 50. Se os próprios críticos percebem seu trabalho como sem valor e sem sentido, e caem em estratégias de marketing para atrair as pessoas para os filmes que amam, que lugar a crítica de cinema ocupará na cultura de hoje?

Seja fato ou mito, costumávamos acreditar que os críticos poderiam erguer ou demolir um filme: Pauline Kael disse ter resgatado o agora clássico Bonnie e Clyde e, assim, encorajou Hollywood a se reinventar. O apoio da crítica significou muito para o jovem Quentin Tarantino, e os críticos (e cineastas) franceses dos Cahiers du Cinéma contribuíram para que Alfred Hitchcock fosse levado a sério em sua terra natal e em Hollywood. É difícil imaginar uma crítica de cinema tão impactante hoje, o que não significa que não exista boa escrita, vinda de vozes estabelecidas e novas. Em vez de máquinas de hype, esses escritores são artesãos, reunindo sua experiência pessoal, conhecimento cinematográfico, pensamento crítico e entusiasmo para escrever artigos que desafiam perspectivas e refletem sobre o mundo de hoje.

Em uma entrevista recente para a Sight and Sound, o cineasta Paul Schrader (ele mesmo um ex-crítico de cinema) disse: “Houve um período em que a crítica de cinema floresceu, mas isso porque o público queria filmes melhores.” Este artigo não abrirá uma nova caixa de Pandora, mas nas semanas seguintes a um dos maiores fins de semana de bilheteria em muito tempo, vale a pena se perguntar o que o público de cinema deseja hoje em dia. Oppenheimer, um filme biográfico de três horas dirigido pelo amado e lucrativo Christopher Nolan, parece o oposto da Barbie, que apesar de sua criatividade permanece fundamentalmente um anúncio de um brinquedo. É precisamente em circunstâncias tão complexas e aparentemente paradoxais que os críticos de cinema podem nos ajudar a entender o que a indústria cinematográfica está passando – deixar isso para o Twitter pode gerar takes desconcertantes e absurdos. Esta crítica que lhes fala diria que pelo menos uma coisa parece clara: os espectadores querem filmes que seus criadores levem a sério, em vez daqueles que são jogados online sem cerimônia e copiados de uma versão anterior. Não parece coincidência que nem Barbie nem Oppenheimer sejam filmes de franquia ou sequências, e que ambos tenham inúmeros atores cujos talentos são colocados em destaque (e no caso da Barbie, atores que foram tratados como crianças que frequentam o melhor acampamento de verão de todos os tempos) – e, finalmente, que ambos os filmes foram considerados como tendo alguns dos melhores roteiros deste ano. Talvez as greves resultem em maior justiça para os cineastas e, portanto, em maiores filmes – e maior crítica cinematográfica.